Eu tive a ideia de fazer o Telecurso Zé Ruela por causa
deste problema, e este post deveria ser o início da série. Mas como os posts de
pneu já estavam prontos, acabaram entrando primeiro, e esses aqui ficaram na
geladeira por anos Espero desovar mais telecursos meio acabados em breve.
Um terminal rotular trabalhando em flexão é um problema
grave. E mais grave é que pelas fotos das últimas competições estudantis pelo
Brasil, eu pude perceber que a coisa virou uma praga. Todo mundo está fazendo
isso nos seus carros, e como parece ser uma solução elegante, virou meio que
default. E os juízes devem coibir isso. Meu medo é que com os anos isso vire
uma coisa normal, os juízes considerem isso normal, os estudantes se formam e
vêem isso normal, e no dia que eu comprar um carro com isso, vou pessoalmente na
fábrica chamar o engenheiro de burro.
Então vamos pro problema. Me desculpem os desenhos, mas
desde que mudei de trabalho não posso mais usar o Catia, e ficaram somente os
desenhos na mão pra explicar as coisas. Mas melhor isso que nada, certo?
Deixa eu começar pelo começo: há muitos anos atrás, quando
eu ainda participava de uma equipe de MINI BAJA (e olha que faz tempo que o
termo mini baja não é mais usado), enchia o saco do Rato para que ele fizesse
uma suspensão dianteira assim:
Fig. 1 – esquema em
vista explodida de uma suspensão duplo A com erro em aplicação
Era o mundo perfeito: com essa suspensão dava pra ajustar
cáster, câmber, convergência, e até um pouco de ajuste da bitola. Tudo poderia
ser feito simplesmente rosqueando a mais ou a menos alguns terminais. E, atrasado
no curso como sempre fui, não entendia porque ele não fazia essa suspensão.
Me formei, vi que isso era errado, mas confesso que não
entendia direito o tal do REIB, ou Rod
End In Bending. Traduzindo: Terminal rotular em flexão. Então, vou tentar
ajudar a quem também não entende direito isso, pra ver se não acontece mais de
eu encontrar essa praga nas competições.
Pra começar, vamos ver algumas das cargas que passam da
manga para a bandeja. Essas cargas necessariamente passam pelos terminais, já
que são o elo de ligação entre os dois componentes. Nesta figura temos a vista
frontal de uma suspensão dianteira:
Fig. 02: Momento fletor no terminal em vista frontal
Em azul, as cargas que entram vindas do solo, e em verde a
reação do conjunto amortecedor/mola. Repare que mesmo que a reação esteja
alinhada com o ponto de apoio, no terminal rotular ainda há uma flexão (em
vermelho).
Isso foi em vista frontal, uma situação onde é mais crítico
para carros off-road, apesar do desenho ser de um carro de pista. Agora vamos
ver uma vista lateral, que é mais crítica para carros de asfalto (com um
desenho de carro off-road, me perdoem):
Fig. 03: Forças atuantes na manga em vistas lateral e
superior
O que temos aqui são as cargas de frenagem, uma reação da
pinça de freio sobre a manga. Isso gera um binário na manga, cuja reação é
representada pelas setas azul e verde. Quem segura este movimento de girar a
manga (e a pinça de freio) junto com a roda é a bandeja de suspensão. E essa
carga passa pelos terminais rotulares. Na vista superior podemos ver como
ocorre essa flexão do terminal. Pra facilitar, mostrei somente a carga sobre o
terminal superior. Em verde, as cargas da manga, e em vermelho, a flexão.
Certo, e como resolver isso? Vamos ver primeiro a principal
recomendação de como montar um terminal rotular em uma barra:
Fig 04: Boa prática
da instalação da de um terminal rotular.
Reparem que a ponta do terminal está “enterrada” na barra
(ou bucha) em pelo menos uma vez e meia o seu diâmetro. Isso é importante para
que a transferência de carga seja gradual da rosca do terminal para a bucha da
barra. Além disso, temos uma contraporca para manter a posição do terminal.
Essa contraporca é importante, e acreditem, se ela ficar solta, a barra vai
correr. Se o outro lado for uma rosca esquerda, aí pior ainda. Você com certeza
vai perder a regulagem. É incrível como eu pego essas contraporcas soltas em
inspeções, tanto pra SAE como para a CBA.
Aliás, um parêntese aqui. Muito cuidado com o torque
aplicado nessa contraporca. Consultem sempre o manual do fabricante do terminal
sobre o torque a ser aplicado. Torque de menos solta a porca. Torque demais
cria uma tensão extra sobre a rosca do terminal, e com a tração a ser colocada
na barra que já vai trabalhar a peça, pode haver a ruptura.
Vamos ver agora como acontece a quebra. Já vimos antes quais
são as forças fletindo o terminal, então vamos olhar em mais detalhe como o
ocorre a falha:
Fig 05: Terminal
submetido a flexão
Claro que a imagem acima está exagerada. Mas as forças de
flexão tendem a fazer isso. Acontece que a barra que está fletindo é uma rosca,
um concentrador natural de tensão. O resultado é fácil: esforços cíclicos +
concentrador de tensão = Fadiga acelerada. Com o tempo isso vai quebrar. Isso
se não der azar de bater num morro, numa zebra, um esforço a mais vai provocar
quebra imediata.
E o que fazer para evitar isso? Bom, eu posso evitar que o
terminal flexione da maneira que está na figura acima, colocando porcas e
arruelas, para que a barra fique próxima do início da rosca. Assim não vai ter
problema, a maior parte da rosca vai estar apoiada. A figura abaixo dá uma
ideia do que vai acontecer:
Fig. 06: Terminal com
porcas apoiando a barra.
Ué, mas se a rosca está quase toda escondida, protegida,
porque falhou? O que aconteceu? Lembre que o momento de flexão é o mesmo: o
peso do carro não mudou, os pontos de apoio do amortecedor não mudaram, a
geometria da suspensão também não, nem a manga. Portanto, as condições são as
mesmas das figuras 02 e 03. A única coisa que mudou foi a contraporca extra
para dar mais apoio. Antes, você tinha, vamos supor, 12 fios de rosca expostos,
para fletir. A carga de flexão estava distribuída nesses fios. Agora, você tem
6 fios fletindo, e o momento de flexão é o mesmo. Resultado: vai quebrar mais rápido.
Se você tentar “juntar”a contraporca na cabeça do terminal, como no
detalhe da figura acima, para evitar ao máximo o número de fios de rosca expostos,
mesmo assim não vai adiantar. SEMPRE vai ter um fiozinho, uma entrada de rosca
exposta, e é justamente ela que vai quebrar, porque toda a tensão estará nela.
Não, essa solução não serve.
Novamente, o que fazer pra evitar isso? Tá fácil. A resposta
vem na ponta da língua: É só colocar um terminal de diâmetro maior. Com uma
área de seção maior, as tensões serão menores, e poderemos prolongar a vida em
fadiga, certo?
NÃO.
Essa não é uma solução elegante. Aliás, é uma solução bem
tosca, do ponto de vista de engenharia. Não interessa o diâmetro, a rosca
continua lá, concentrando tensão, abrindo a trinca. Na verdade, ao colocar um
terminal maior, você está adiando o problema, não resolvendo. Isso é errado.
Não dá pra implementar essa solução num carro de rua. Ou pior, imaginem como
seria em um caminhão. A manga e suas conexões são componentes críticos, cuja
falha pode levar a sérios acidentes. Não dá pra brincar.
Mesmo se o aumento do diâmetro da rosca fosse uma solução
viável, a pergunta seria: O quanto aumentar o diâmetro? Para um bom fator de
segurança, seria necessário dobrar o diâmetro. Um juiz de design de Fórmula SAE
ficaria muito bravo ao ouvir que a massa suspensa foi aumentada porque a equipe
não sabia como resolver o problema...
Sendo realista, eu até concordo com a fabricação de uma
bandeja com terminais em flexão, para fins de ajuste fino do carro. Você pode
usar o terminal rotular trabalhando em flexão numa bandeja protótipo, e depois
que o carro estiver ajustado, pegar as dimensões da bandeja, os ângulos da
geometria de suspensão, e fabricar a bandeja definitiva. Eu daria um crédito
para a equipe que fizesse isso e me contasse na competição. Seria uma forma
válida de desenvolvimento de produto, o uso dessa bandeja-protótipo. O que não
vale é aparecer na competição com uma bandeja dessa dizendo que é protótipo, e
o carro de produção vai ser diferente.
Acho que nesse ponto já derrubei todos os argumentos para se
usar isso comercialmente. E em uso estudantil também. Lembrem que Baja e FSAE
são carros de recreação, que no projeto devem ser produzidos em massa para
serem VENDIDOS ao mercado de recreação. E mais do que isso, a competição avalia
PROJETOS DE ENGENHARIA.
Até aqui foi explicado o problema, o que está errado. No
próximo post eu explico o que pode ser feito para se livrar do problema de uma
maneira definitiva.
Muito bom! Começando a aprender sobre projetos de suspensão. Já sei uma das coisas que não posso fazer
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